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sexta-feira, 17 maio 2019 11:54

"Voluntariado e sociedade" por António Barreto

Já não é a primeira vez que o faço, mas voltei a procurar uma definição de voluntariado. A que adoptei é a mais simples: “ajudar o outro”. Uns dirão “ajudar o próximo” e também “prestar serviço aos outros” ou “à comunidade”, o que traduz o essencial. Todas as expressões servem. De um ponto de vista mais geral, o melhor sentido é o de “reserva de compaixão de uma sociedade”.

O termo é delicado. Nos tempos que correm, a compaixão depressa adquire um significado lamechas, dirão alguns. É um erro. A compaixão, a partilha do sofrimento alheio, é um dos sentimentos mais nobres das sociedades e da humanidade. Há quem, nesta era de empreendimento e sucesso, de valores materiais e de positivismo político, entenda que compaixão se parece demasiado com dó, pena ou piedade. Sinceramente, não sei que fazer desses reflexos condicionados. A reserva de compaixão de uma comunidade e de uma sociedade é o seu mais alto valor humano. A compaixão aproxima o nosso bem-estar do bem ser dos outros. Em casa ou no emprego, no trabalho ou no hospital, na guerra e na paz, a compaixão traduz-se por uma atitude e um sentimento. Mas também por acção ou actividade. Aqui começa o voluntariado.

Não se trata apenas de dar dinheiro ou assinar petições. Fazer leis e criar sistemas. Ou dar de comer ou de agasalho. É mais do que isso tudo. É agir e trabalhar por nada. Por sentimentos. Por sentido de dever. Por obrigação moral. Por amor. Por compaixão. Trata-se de dar uma das coisas mais valiosas que temos, o tempo. O tempo de si. Na verdade, é dar-se a si próprio. É o voluntariado, a dádiva de si por nada, sem recompensa, sem troca, sem que se saiba e sem fazer currículo, que constitui a mais nobre acção individual para com os outros. É muito mais difícil dar o seu tempo e a sua vida do que qualquer outro bem. Em termos abstractos, o voluntário corresponde mesmo a uma noção mais vasta do que o parente cuidador, dado que este ainda tem o amor de família como motivo aparente. Não diminuo a acção deste último, mas sublinho apenas o facto de o voluntário nem sequer ter esse vínculo.

As sociedades contemporâneas desenvolveram (e bem) os direitos sociais. Criou-se gradualmente, nas últimas décadas, talvez quase um século, o conceito de que existem direitos sociais, diferentes dos clássicos direitos fundamentais, humanos, cívicos e políticos. Estes direitos sociais que hoje obrigam as sociedades que os incluíram nas suas Constituições, substituem ou acrescentam-se a valores mais tradicionais e antigos de assistência, caridade, socorro, esmola, abrigo, previdência ou misericórdia. Os direitos sociais não só abrangem as necessidades humanas dos que precisam, dos que têm carências de toda a espécie, dos fracos e dos pobres, mas também as transformam em necessidades de toda a gente, de todos os cidadãos. Os direitos sociais obrigam o Estado e as entidades públicas. Podem até ter influência junto de entidades privadas, mutualistas e religiosas. E têm um grande valor e utilidade: transformam em direito de todos, com dignidade humana, o que poderia ser considerado apenas como necessidade de alguns. Os direitos sociais são direitos positivos, direitos públicos, que obrigam o Estado e as autoridades.

Acontece que, sabemos hoje, os direitos sociais são protegidos pelos poderes públicos e por vezes praticados com eficiência (desemprego, habitação, alimentação, abrigo, escola, saúde e outros), mas de modo burocrático e institucional. O que é bem, o que é positivo do ponto de vista da dignidade humana e da igualdade dos cidadãos, mas que é insuficiente. A qualidade humana no atendimento, na prestação de serviço, no apoio, na assistência, na ajuda e no conforto é cada vez mais essencial. Não se trata, como uns dizem, de complementar os serviços oficiais ou de os substituir: é muito mais do que isso, é dar o que os serviços não podem dar, isto é a humanidade e o valor do humano.

O voluntariado é isso. Dar o que mais ninguém pode dar. Dar o sentimento e o afecto, dar o sentido do humano. Dar calor e compreensão. Dar ouvidos e olhos. Sentir os horários, perceber as rotinas, estar à escuta, aceder a súplicas, compreender uma necessidade, aliviar a timidez e saber que muitas vezes quem sofre não tem coragem para pedir. Dar e sentir tudo isso sem nada esperar, sem haver troca nem recompensa. E não se trata apenas de compaixão e de valores sentimentais. Os voluntários são muitas vezes mais eficazes, porque mais disponíveis, porque percebem melhor todos e cada um, porque não estão automatizados e porque percebem que cada pessoa é uma pessoa, cada caso é um caso, cada família é uma família. Nesse sentido, os voluntários dão um excelente contributo para os serviços sociais, pois enquanto estes estão feitos para a igualdade, para o homogéneo e para a rotina, os voluntários estão atentos a cada um. Os voluntários prestam atenção, não fazem contas, nem medem o tempo.

As actividades dos voluntários são infinitas, como ilimitadas são as necessidades de quem sofre. As instituições podem resolver muitas dessas necessidades. Mas há umas tantas a que só um voluntário pode acudir. Sei de voluntários que foram os primeiros a visitar a domicílio gente sem mobilidade. Ou a tratar, limpar e alimentar idosos doentes em suas casas. Ou passear com quem mal pode andar sozinho. Ou criar bibliotecas em instituições de abrigo. Ou distribuir pequenos-almoços em hospitais a doentes que ficavam à espera de consulta das cinco da manhã à três da tarde. Ou arranjar roupas para crianças que as não tinham. Ou tomar conta de famílias durante um internamento. Ou visitar prisões e reclusos, uma das mais duras actividades que se imagina. Ou trazer música, cultura e espectáculos aos hospitais e a casas de idosos. Ou recolher alimentos nos supermercados e restaurantes. Ou preparar cobertores e roupa para quem precisa. Ou conversar. Ou simplesmente dar a mão.

As actividades dos voluntários, em Portugal, conheceram um desenvolvimento notável nos últimos anos, talvez nas últimas décadas. Não há muito tempo, mas já o suficiente para falarmos de algo consolidado. Há já uns milhares de voluntários por todo o país, nas mais variadas organizações. É bastante, mas ainda pouco. As instituições poderiam fazer mais um esforço no sentido de angariar, recrutar e sobretudo organizar voluntários. As instituições deveriam também orientar melhor os seus serviços e as suas instalações a fim de permitir a acção e o desenvolvimento do voluntariado. Não sei, sinceramente não sei se é necessário legislação, coisa que se pensa que, em Portugal, falta sempre. Mas sei que as instituições oficiais (e as privadas) necessitam de se organizar melhor para dar mais espaço às associações e às actividades de voluntários.

Sei ainda (e lamento) que os voluntários entre nós sejam sobretudo mulheres. Parece que a elas fica reservada essa reserva de compaixão. Nos amigos dos hospitais, nas visitas aos reclusos, nos lares de idosos, nas instituições de reabilitação, nas casas de apoio às vítimas de violência e nas creches especiais, é quase sempre a regra: os voluntários são sobretudo mulheres. Honra para elas! Mas pesar pela ausência de homens.

Sei também que tanto as organizações como os próprios voluntários são sobretudo enquadrados ou movidos por valores religiosos. Nada a objectar. Nenhuma reticência. Apenas um lamento: os laicos, os não crentes e os agnósticos não participam tanto quanto deveriam. Confiam, é certo, no papel do Estado e na aplicação dos direitos sociais positivos. Mas sabemos e eles sabem que tal não chega. Será que a misericórdia é só religiosa? Será que a compaixão é um atributo ligado à transcendência? Será que a hipótese de uma recompensa divina não atrai os leigos? Não tenho resposta convicta, mas sei que as instituições e as organizações de voluntários deveriam prestar atenção ao eventual capital de ajuda e apoio que se poderá obter para lá dos limites das igrejas e das confissões.

Sei finalmente que certos grupos políticos e certas doutrinas ou ideologias olham para a voluntariado com mais simpatia e mais atenção do que outros. Essas diferenças podem estar relacionadas com os respectivos valores, a começar pelo papel que entendem atribuir ao Estado, à sociedade civil, às entidades privadas e aos cidadãos. A esses podemos dizer com simpatia que a compaixão não tem cor política. E que são os gestos dos homens e das mulheres, dos voluntários e dos cuidadores, que dão verdadeiro significado aos direitos sociais de que nos orgulhamos.

A tantos voluntários aqui presentes, só me resta prestar a minha grata homenagem.

 

 

António Barreto

Conferência da Associação dos Amigos do Hospital de Santa Maria a 14 de Maio de 2019


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